Nunca tinha visto ninguém morrer em sua frente. O celular ainda ligava pra emergência quando a médica que também estava passando pela rua anuncia a morte. Ele era vivido, tinha um relógio de bolso que escorregou quando o carregaram. Fazia tempo que não via um relógio desses, quem sabe nunca havia visto.
Na Cantina dos Poetas ela descansa a mente. Nas mãos o livro cor de sangue de Cassirer. Tomando um suco de morango o mundo é mais doce. Olhando a gérbera vermelha no centro da mesa de madeira escura lembra do seu coração vermelho na alma envolta em sombras. Pega o guardanapo, rabisca umas palavras: “Vendo meu coração pra churrascaria. Coração no espeto, duro mas bem temperado”.
Ele espicha os olhos azuis cor do céu pra ler as meias palavras e com um quarto de sorriso pergunta:
- A senhorita é poeta?
- Não não - uma risada pra completar compasso de fala.
- A senhorita é arte?
- Oi? Se eu faço arte?
- Não, assim como disse mesmo. Tens cara de arte, pura e simples.
- A arte nunca é simples.
- A arte é lógica.
A palavra abre em si todas as epifanias tão bem trancadas.
- O quanto a senhorita já viveu?
- Tenho dezoito anos.
- Não foi o que perguntei - ele mostrou os dentes pelos quais já deviam ter passado tantos sorrisos e tanto amores - perguntei a quanto tempo você vive.
A pergunta calou cada gota de sangue.
- Não estou bem certa de que já comecei.
- E o que você faz?
- Letr...
- Não, não quero saber o que você estuda, se trabalha, o que pretende, onde nasceu... perguntei o que você faz.
- Eu me entrego.
- A que?
- Tenho a mania de me doar à paixões, à emoções. Tenho mania de chorar, de ser insegura. Tenho mania de abrir mão do que mais desejo se alguém deseja o mesmo. Sou amor da cabeça aos pés, nasci pra amar e às vezes receber amor em troca. Tão real como a vida. Não penso em me renunciar... cada lágrima me lembra que tenho uma opção a seguir. A cada lágrima eu peço a deus pra que eu não me perca no caminho.
- E qual seu nome?
- Even. E o seu?
- Gosto de pessoas com nome de palavra. Lembra que tens em ti todas as palavras do mundo... pode me chamar como quiser, se voltar a me ver.
- O senhor vem sempre aqui?
- Primeira vez. Escuta menina, tenho um compromisso inadiável. Só antes um conselho: ninguém nasce forte o suficiente pra não se apegar à nada pra se sustentar, nem ninguém nunca vai se tornar. Mereço um sorriso?
Ela sorri sincera.
- E você, senhorita das palavras, já pensou em ser escritora?
- Já pensei.
- Já pensou em ser professora?
- Já pensei.
- Já pensou em ser arte?
- Já pensei.
- E o que quer ser?
- Viva.
Com um olhar de consentimento ele olhou o relógio de bolso, encostou dois dedos na testa dela pra se despedir, e sem voz saiu caminhando entre as floriculturas. Fazendo terremoto dentro dela.
No mesmo instante ela sentiu que tinha em si novamente todas as palavras do mundo.
2 comentários:
gosto mesmo desse texto...
gosto mesmo!
mesmo! mesmo!
*-* Maravilhoso esse texto!
Me fez viajar... Pensar em coisas que nunca pensei.
Incrível mesmo.
Meu favorito.
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