2 de julho de 2010

A paixão do Circular Sul.

Ônibus lotado lhe dava o desejo inquietante de possuir clarisciência. Queria poder encostar em tudo ali, em todos ali, e saber por onde passaram. E mais, queria saber também pra onde estavam indo (apesar disso ser fácil de acertar quando se sabe de onde alguém vem). Talvez a pulseira da moça ao lado tenha sido feita pela moça que vendia suas artes na barraquinha da feira com uma blusa psicodélica e uma criança de olhos cor de mel ao lado. Talvez o motorista tenha sido o motorista que levou seu primeiro namorado até a sua casa pela primeira vez. Talvez aquele metal do chão tenha sido transportado num caminhão com uma placa da sua cidade e um caminhoneiro casado com uma moça de blusa psicodélica que faz pulseiras pra vender na feira. Não sabia, mas queria saber. Queria desses quereres impossiveis que nos assustam com a possibilidade de nos enlouquecer. E foi também com esse querer que o olhou assim que ele passou pela catraca.

Quis encostar nele, quis saber qual shampoo e qual perfume ele tinha usado, queria saber onde ele tinha comprado aquela calça jeans, queria saber a quantos shows aquela camiseta de banda já tinha ido. E de repende, as dezenas de pessoas passaram a ser apenas uma (e ela é assim, não consegue dividir atenção por muito tempo, joga tudo pra um algo só, corpo, alma, vísceras, tripas e falta de ar...) Olhou fundo nos olhos de meio dia dele, no cabelo de noite, na  pele de entardecer. E desejou passar todas as horas do dia o tocando, com os olhos, que fosse.

Sentou direito, passou um brilho nos lábios, soltou o cabelo. Ele parou dois bancos a frente, de pé, ao lado de um cara de boné azul pra quem ele deu a mochila, pareciam amigos. O viu tirar o celular do bolso, escrever alguma coisa. O que seria? pra quem seria? será que eles se conheciam a muito tempo? seria uma paixão? sim sim, definitivamente era uma paixão. Ele tinha jeito de apaixonado, cara de apaixonado. Batucar a música dos fones e sorrir com os olhos é coisa de gente apaixonada. O tênis batido e a bermuda eram coisa de gente esportista. Gente esportista é apaixonada. Desejou o ver praticando algum esporte, e depois tomando banho (será que ele deixa as roupas largadas no banheiro?), e depois o vendo dormir. É, gostava muito de ver gente dormir. Ele ficava olhando pros lados, achou que ele era um tanto hiperativo, imaginou a tia da pré-escola chamando sua atenção. Isso, chamando pelo nome dele! "Pedro, quieto" Pedro? não, não tinha cara de Pedro. Quem sabe Lucas. Ou Henrique. Na verdade, ele tinha cara de gente que tem nome estranho. E imaginou quem tinha escolhido seu nome. Será que foi a mãe? será que ele tem mãe? achou que eles brigam de vez em quando, ele tem cara de gente que briga com a mãe de vez em quando. Podia namorar com ele. Podia ir almoçar aos domingos na casa dele. Será que ele comia lasanha no domingo? Imaginou os dois dormindo na mesma cama, imaginou falando dele pros amigos. Que será que ele via na internet? putaria? não não, tinha cara de quem não faz isso. Tinha cara de quem vê séries. Mas não algo muito nhe-nhe-nhem nem algo muito indie... tinha cara de quem vê supernatural. E desejou ver supernatural com ele.

Ele a viu assim que subiu o degrau mas teve que desviar o olhar quando passou pela catraca já que ela olhou em sua direção. Não sabia como sustentar olhares desconhecidos, mas não sabia disso, nunca tinha parado pra pensar na questão. Pensava em muita coisa, pensava o tempo todo, mas não em si. Pensava em coisas mais importantes como o brasileirão começando, o vestibular chegando, o violão que tinha que comprar. Ela estava ali sentada e bonita e delicada, tinha algo nos olhos que o prendia. E desejou parar bem ao lado dela. Mas as pernas tremeram, ficou com medo de ter esquecido o desodorante, parou onde estava. Reparou em como o cabelo dela era loiro nas pontas e pensou em como hoje em dia todas as mulheres que ele acha bonita tem cabelo loiro nas pontas (a recepcionista da academia, a moça do Mc, a atriz daquele filme porno das latinas, a Luiza, a professora do inglês, a Marcia...). Ela também tinha peitos bonitos, ele pensou se um dia ia conseguir abrir soutiens com uma mão só. Precisava de prática, mas isso ele não tinha. Diminuiu o rock nos fones, queria ouvir o que ela tava falando com a senhora sentada ao seu lado. Ficava movimentado a cabeça, queria que a vergonha o deixasse olhar direto pra ela, e não só pros reflexos. De novo os olhos fazendo amor de tão fundo que foram um no outro, mas dessa vez ela desviou. Quem sabe tivesse medo de penetração. Talvez fosse virgem de olhos. Pegou o celular e mandou mensagem pro amigo que estava sentado ao seu lado, não podia correr o risco de falar e ela ouvir. Disse que queria aquela menina de blusa vermelha pra ele.

A viagem chegando ao fim, ela prometeu pra si que ia ficar no onibus até ele descer. A cada ponto ele torcia pra que ela descesse pra que ele descobrisse onde ela mora. Chegou o ponto da casa dele, ele desejou ter tido coragem pra falar pelo menos um oi pra ela. Ela desejou ser mais bonita pra ter chamado a atenção dele. Ele desceu, no instante em que a porta fechou ela olhou bem nos olhos dele e sorriu. Ele sorriu de volta. Os olhos tiveram um orgasmo juntos, efêmero como um nunca mais. E eternizou.

Um comentário:

Algorhythmmer disse...
Este comentário foi removido pelo autor.