7 de julho de 2010

O Sonho.

Dessa vez não queria ser clarisciente, queria ser invisível. Sentada no antepenúltimo banco do ônibus, como de  costume, encostou a cabeça no vidro e deixou o pensamento correr mais rápido que a paisagem do cerrado na seca que corria ao seu lado. Olhando tantas expressões, tantas cenas inusitadas, pensou que o sonho de todo fotógrafo era ser invisível. Com a mão na D90 dentro da mochila, imaginou que linda foto daria a garotinha negra sentada no colo da mãe, de mãos dadas, com os olhos queimando num laranja mais vivo que o por do sol do lado de fora do vidro. Achou que eram os olhos da criança que iluminavam o ônibus.

Não se conteve, com o máximo de discrição possível (é, você sabe como, fingir que só está olhando as fotos prontas, que está apontando pra todos os lados aleatoriamente e aí.. click). Não ouviu barulho nenhum, pensou que fosse problema com a câmera, tentou de novo. Nenhum som, nenhum olhar curioso ou incomodado em sua direção, além da foto planejada no LCD. Se as pessoas não estavam prestando atenção nela, tentou mais uma, agora do senhor sentado à sua frente, com a luz mágica contra o rosto cultivado. Outra vez, bom resultado e nenhum olhar pertubador.

Após uma parada, um rapaz ao sentar na cadeira vaga ao seu lado coloca a mochila em seu colo, sem explicações. Ela já ia começar a reclamar quando percebeu que não tinha voz, se desesperou. Tentou encosta-lo para pedir ajuda mas foi como se suas mãos sentissem os ossos do rapaz, ainda que ele nada sentisse. O pavor se apoderou dela quando percebeu que seu reflexo na janela não mais existia. Por um momento tentou respirar fundo, tudo ia voltar ao normal, abriu os olhos (que olhos?) e tudo continuava igual. O medo era tão grande que pra mudar a direção do olhar era preciso um esforço tremendo. Com o coração voltando a palpitar, lembrou do pensamento de quando entrara no ônibus.."o sonho de todo fotógrafo é ser invisível" e xingou até a quinta geração da fada/anjo/demonio/genio/santo que a tivesse escutado.

Enquanto a perplexidade era bombeada no lugar do sangue, um céu de arco-íris se desenhou a sua frente. Os tons no céu era como um arco-íris gigante. O amarelo de fim de sol, o laranja, o vermelho, o violeta, até se dissipar no azul que trazia as estrelas uma a uma. Era daqueles momentos que só acontece uma vez. Click. Levantou, o terror foi se tornando divertimento ao perceber que podia captar as menores nuances sem que ninguém mudasse de posição envergonhado. O olhar do namorado pra outra moça de calça de ginastica, os poros da barba do skatista ouvindo música, o motorista olhando a discussao do casal atras dele, as conversas, o choro das crianças, o sono de morfeu nas janelas...

Fez um trabalho como jamais imaginara, ouviu conversas íntimas sem ser notada, estava tão ansiosa pra contar pra todos e mostrar as fotos e... caiu em si. Sequer existia, como se fazer notar? como dividir o belo que tanto lhe encantava? como transmitir suas emoções?

Sentia uma inundação de lágrimas correndo rápidas em direção ao seus olhos quando abriu os olhos devagar... o moço de pé ao seu lado pediu gentilmente a mochila "obrigada por segurar pra mim, moça". Viu seu reflexo nos vidros, nos metais. Sorriu sozinha, a próxima parada era a sua.

Antes de descer, pediu educadamente pra mãe da criança dos olhos de fogo pra tirar uma foto, da qual a menina se escondeu no pescoço da mãe. Desceu e sentiu o começo de noite... prometeu tomar mais cuidado com o que deseja.

O sonho de todo fotógrafo é ser invisível... falou baixo e riu enquanto andava pra casa.

Nenhum comentário: